A Revolução Silenciosa: A Valorização do Trabalho Doméstico na Partilha de Bens

04/09/2025

Por Geozadak Almeida Cardoso 

Um dos pilares mais sólidos e, ao mesmo tempo, mais invisíveis da construção de qualquer patrimônio familiar é o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos. Por décadas, o Direito brasileiro tratou essa contribuição de forma implícita e, na maioria dos casos, insuficiente. Agora, uma mudança sísmica se avizinha com o Projeto de Lei nº 4/2025, fruto da reforma do Código Civil, que propõe dar um valor jurídico e patrimonial a essa dedicação. Trata-se de uma revolução silenciosa, que visa corrigir uma injustiça histórica e modernizar a visão do Direito de Família sobre o que realmente constitui o "esforço comum".

O Cenário Atual: A Invisibilidade do Trabalho na Legislação Vigente

Para entender a magnitude da mudança, é preciso olhar para a nossa legislação atual. O Código Civil de 2002, embora tenha seus méritos, estrutura a partilha de bens sob uma ótica predominantemente financeira.

  • No Regime de Comunhão Parcial de Bens (o regime legal padrão): Presume-se que os bens adquiridos onerosamente durante o casamento são fruto do "esforço comum". No entanto, essa é uma ficção jurídica que nem sempre se traduz em justiça. Se um dos cônjuges abdicou de sua carreira para cuidar do lar e dos filhos, permitindo que o outro se dedicasse exclusivamente ao trabalho e acumulasse patrimônio, a partilha dos bens comuns pode não refletir a real contribuição de quem ficou em casa.

  • No Regime de Separação Convencional de Bens: A situação é ainda mais drástica. Neste regime, não há comunicação de patrimônio. O cônjuge que se dedicou ao lar, em detrimento de uma carreira remunerada, não tem direito a nada do que foi acumulado pelo outro, mesmo que sua contribuição doméstica tenha sido a base para o sucesso profissional e financeiro do parceiro. A lei atual simplesmente ignora essa dinâmica, podendo levar a um claro enriquecimento sem causa de uma parte em detrimento da outra.

A jurisprudência tenta, timidamente, contornar essas situações por meio de indenizações ou pensões, mas são soluções paliativas e que carecem de um amparo legal explícito e robusto.

A Proposta da Reforma (PL 4/2025): Reconhecimento e Justiça

O PL 4/2025 ataca o cerne do problema. A proposta insere um dispositivo que permite ao juiz, no momento da partilha, reconhecer o trabalho doméstico e de cuidado como uma contribuição efetiva para a formação do patrimônio.

A grande inovação é a criação de um mecanismo compensatório. O texto proposto estabelece que, independentemente do regime de bens (inclusive na separação convencional), se um dos cônjuges ou companheiros contribuiu significativamente para o acúmulo ou manutenção do patrimônio do outro por meio da dedicação ao trabalho doméstico ou ao cuidado dos filhos, o juiz poderá fixar um valor para compensá-lo.

Sobre este ponto, a jurista Ana Carolina Brochado Teixeira, Diretora Nacional do IBDFAM, em artigo de análise sobre a reforma, destaca que a proposta visa a "mitigação dos efeitos deletérios do regime da separação de bens, quando se constata o enriquecimento de um dos cônjuges em detrimento do outro, que ficou à margem do mercado de trabalho em prol do projeto de vida familiar". A citação reforça que o objetivo não é alterar o regime de bens escolhido, mas sim impedir uma injustiça manifesta que a aplicação fria do regime poderia causar.

Impactos Práticos e a Mudança de Paradigma

Se aprovada, essa alteração trará impactos profundos e multifacetados:

  1. Segurança Jurídica e Proteção ao Cônjuge Vulnerável: Cria-se uma ferramenta legal clara para proteger o cônjuge (na esmagadora maioria das vezes, a mulher) que historicamente abdicou de sua independência financeira em prol da família. A decisão não dependerá mais de interpretações judiciais extensivas, mas de um dispositivo legal expresso.

  2. Novos Desafios para a Advocacia: Para os advogados de família, surge uma nova e complexa tese de argumentação. Será preciso comprovar e, de alguma forma, quantificar essa dedicação ao lar. A produção de provas (testemunhas, documentos, etc.) para demonstrar como essa contribuição foi essencial para o sucesso do outro cônjuge será um novo campo de batalha jurídico.

  3. Mudança na Concepção de "Esforço Comum": O conceito de "esforço comum" deixa de ser meramente financeiro. A lei passará a reconhecer oficialmente que o sucesso patrimonial de uma família é construído tanto por quem traz o dinheiro quanto por quem administra o lar e cuida do capital humano (os filhos), garantindo a paz e a estrutura para que o outro possa prosperar.

Conclusão

A proposta de valorização do trabalho doméstico na partilha de bens é, talvez, um dos avanços mais significativos e simbólicos da reforma do Código Civil. Ela representa um passo decisivo para alinhar a legislação à realidade social, conferindo dignidade e valor econômico a uma função essencial, porém historicamente negligenciada. Mais do que uma alteração técnica, é uma mudança de paradigma que reafirma que o casamento e a união estável são projetos de vida em comum, onde toda forma de contribuição para o bem-estar e prosperidade da família deve ser, por justiça, reconhecida. Acompanhar a tramitação deste projeto é fundamental para todos que desejam um Direito de Família mais equânime e humano.

A complexidade de uma reforma legislativa como esta naturalmente levanta muitas dúvidas sobre como essas mudanças podem impactar planejamentos familiares e processos de divórcio, em andamento ou futuros. Para mais esclarecimentos e uma análise aprofundada sobre este e outros temas do Direito de Família, nossa equipe de especialistas está à disposição.

Geozadak Almeida Cardoso 

Advogado especialista em Direito de Família e Penal 

OAB/GO 17.185