STF entende que não cabe acordo de não persecução penal em crimes de racismo e injúria racial

O ministro Edson Fachin do STF atuou como Relator no RHC 222.599 e no ultimo dia 6/2/23 entendeu que os crimes raciais, incluindo a injúria racial prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal e os delitos previstos na Lei 7.716/89, não devem ser abarcados pelo alcance material do ANPP.
Entenda a decisão do caso concreto
No citado processo o Ministro destacou que, a promoção do bem de todos, aliás, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, elencados no art. 3º da Constituição Federal de 1988.
Assim, a delimitação do alcance material para a aplicação do acordo "despenalizador" e a inibição da persecutio criminis exige conformidade com o texto Constitucional e com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro internacionalmente, como limite necessário para a preservação do direito fundamental à não discriminação e à não submissão à tortura - seja ela psicológica ou física -, e ao tratamento desumano ou degradante, operada pelo conjunto de sentidos estereotipados que circula e que atribui
não apenas às mulheres mas também às pessoas negras posição inferior, numa perversa hierarquia de humanidades.
Nesse sentido, o Ministro relator, rememorou a expressa previsão no texto constitucional de que " a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais ". Seguindo esse raciocínio, o Ministro ressaltou que:
no tocante ao cabimento de proposição de Acordo de Não Persecução Penal, a legislação ordinária, de maneira escorreita, penso eu, afastou sua aplicação nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor (inciso IV do art. 28-A do CPP). Seguindo a teleologia dessa excepcionalidade, todavia, e não a sua literalidade, essa reserva não deve ser compreendida como a única.
Em outras palavras, o Ministro destaca que não se trata de uma situação excepcional que exige a declaração de incompatibilidade do "ANPP" com o sistema constitucional de proteção dos direitos fundamentais e com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro para a promoção e defesa dos direitos humanos perante a comunidade internacional.
Rememoro, em especial, por conta da conduta delitiva examinada nestes autos , que, recentemente, em 19/2/2021, foi publicado, no Diário Oficial do Senado Federal, o Decreto Legislativo nº 1/2021 , que aprovou o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, adotada na Guatemala - por ocasião da 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, ocorrida em 5 de junho de 2013 -, documento mais abrangente que a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial - aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1967 e ratificada pelo Brasil em 1969 -, pois reprime as práticas discriminatórias também nos ambientes privados, além de ser contundente ao comprometer os Estados a combater o racismo estrutural e institucional.
Ao ratificar a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, o Estado brasileiro reitera seu compromisso em combater o racismo com medidas mais rigorosas, em conformidade com a Constituição Federal, que proíbe a concessão de fiança e a prescrição para crimes motivados por discriminação racial.
Em decorrência da previsão do artigo 4 do texto internacional, o Brasil se comprometeu a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições da Convenção, todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância. O artigo 10, da referida Convenção, por sua vez, exige do Brasil o compromisso de garantir às vítimas (i) tratamento equitativo e não discriminatório, (ii) acesso igualitário ao sistema de justiça, (iii) processo ágeis e eficazes e (iv) reparação justa nos âmbitos civil e criminal, naquilo que for pertinente ao caso.
O Ministro ainda ressalta que:
Nesta ocasião em que delimitamos o alcance material para a aplicação do acordo "despenalizador", para fins de inibir a persecução penal, a interpretação conforme a Constituição constitui baliza e limite necessários para a preservação do direito fundamental à não discriminação racial, operada pelo conjunto de sentidos estereotipados que circula e atribui às pessoas negras posição inferior numa perversa hierarquia de humanidades.
Ainda que hajam vozes a defender a aplicação do ANPP também aos crimes raciais, o Ministro destaca sua inflexão em sentido diverso.
A despeito das consabidas vantagens preconizadas pela novel convenção trazida pela Lei n. 13.964/2019, minha compreensão situa-se também no plano do simbólico, tão importante para a constituição dos fios que tecem a teia de sentidos atribuídos às pessoas negras - tal qual às mulheres - como desprovidas de igual consideração e respeito. A desconsiderar a necessária proteção dessa população inegavelmente vulnerável, referida política criminal "despenalizadora" finda por reverberar no reconhecimento de que o malferimento a determinados bens jurídicos, ainda que penalmente protegidos, não se constituem de status suficiente a conclamar maior rigor da repressão estatal - o que, como visto, é exatamente o oposto do que exige o texto constitucional e os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro internacionalmente.
Apesar de, até agora, os crimes raciais terem sido punidos com penas que se enquadram nos requisitos para apresentação de propostas de acordo de não persecução, é importante lembrar que a dignidade e a cidadania racial são bens jurídicos que não podem ser objeto de negociação legal. Isso porque a pedagogia envolvida na redução das desigualdades raciais seria comprometida se não houvesse uma abordagem adequada do problema: o de aniquilar qualquer significação das pessoas negras como inferiores ou subalternas.
"Despenalizar" atos discriminatórios raciais, nesta quadra da história, é contrariar o esforço - já insuficiente - para a construção da igualdade racial, levada a cabo na repressão de atos fundados em desprezíveis sentidos alimentados, diariamente, por comportamentos concretos e simbólicos reificadores de pessoas negras.
É nesses termos que o Ministro pontua: o alcance material do ANPP não deve abarcar os crimes raciais (nem a injúria racial, prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, nem os delitos previstos na Lei 7.716/89).
O Ministro Edson Fachin negou provimento ao recurso ordinário em habeas corpus. A decisão foi tomada pela Segunda Turma, com a maioria seguindo o voto do relator. Os Ministros André Mendonça e Nunes Marques foram vencidos na votação.
Em suma, não cabe acordo de não persecução penal em caso de racismo ou injúria racial!
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